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Barbosa Tavares escreveu (http://manuelcarvalho.8m.com/barbosatavares31.html):
VIEIRA DA SILVA: ENTRE A MÁGOA E A SEDE DE JUSTIÇA
Diremos que “MARGINAL” ,título do livro no qual Vieira da Silva congrega poemas breves e cantigas de uma vida, só representará marginalidade, porquanto não abundam poetas de sobra que façam da poesia um estandarte de esperança, esgrimindo o verbo na (in)gloriosa, embora utópica, tarefa de aniquilar as iniquidades que os homems engendram no seu colossal egoísmo.
Não falamos de utopia no sentido de descrença que, por via de regra, se atribui a este por muitos desacreditado vocábulo, tão-só no belo e nobre desejo de reformular o mundo segundo os belos desígnios de Thomas More que augurava a tal ilha da perfeição por Vieira da Silva porfiada com toda a licitude do seu edificante humanismo.
São versos clamorosamente erguidos, entoados na cantiga “canção de mágoa” que mergulham na raíz do desespero que a incúria humana germina e levam o autor, incorformista com as atrocidade do mundo, a brandir deste jeito o clamor da inércia.
O que foi feito de nós
Companheiros de viagem
que é da nossa liberdade
feita de fé e coragem
vai-se o tempo e nós aqui
adormecidos no cais
entretidos com o medo
de já ser tarde demais
Há poemas que são setas desapiedadas, desferidas no cerne da injustiça num fragoroso e ingente apelo à fraternidade, para que os homens laborem rumo à justiça e liberdade, num incitar invectivo, de cariz metaforicamente bélico denominado “o tempo é de guerra” do qual retirámos as últimas estrofes.
Bigorna martelo,
Batalha bandeira
arados na terra a lavrar
o tempo é de guerra
até à vitória
vamos pelas ruas lutar
Quem se arroja sonhar para além dos limites da acomodação humana , quem se não contenta com o espectáculo do mundo, emerge “marginal” entre mágoas e laivos de desespero.
Quanto maior é a legítima sede de justiça do poeta, maiores serão as marcas do desencanto e da desventura, porém, venturosamente , eis que surge uma mulher na antepenúltima estrofe a redimir as agruras, a reincitar à vida, a reinspirar “a fúria de desenhar um país”, ou seja, a reacender o sonho perene da justiça e da liberdade.
nos momentos de incerteza
quando apetece fugir
e desistir da viagem
quando cansado de tudo
me sento à beira da estrada
e adormeço a coragem
são os teus gestos
mulher
que me chamam
para a vida
e sinto de novo a fúria
de desenhar um país
Diremos que o susbtracto anímico da poética de Vieira da Silva alimenta as sua raízes na fúria de justiça, num sonho cristalino de fraternidade que só aparentemente revela ingenuidade, porque o autor conhece no sangue do sentir, amargamente, o lancinar da injustiça contudo, não cessa de pugnar pelo erguer da tal cidade, apesar dos de- sencantos e canseiras que o mundo idealizado lhe destina, expressando-o deste jeito:
rasga as manhãs do cansaço
não fiques fora da roda
de mãos dadas avançamos
contra o medo e o desespero
Que lirismo mais autêntico e acendrado que este amplexo de fraternidade transposto nesta poesia descarnada, pungente, despojada de artifícios, que este desejo do autor encarnado no sonho da cidade idealizada, na última estrofe do poema ardentemente vaticinado, de título “um dia”.
vamos erguer a cidade
com tijolos de ternura
no horizonte já se sente
a manhã que há-de chegar
Felizmente, longe vão os tempos em que o timbre ideológico de um autor lhe ofuscavam e demarcavam, de forma apriorística e impediosa, as veredas de interpretação dos seus nobres intentos poéticos.
Cremos que Vieira da Silva talha os seus versos e sua vida, na convicção plena de que o homem é a medida do mundo.A sua poesia é um arado infatigável na prossecução de ideais coroados no enaltecimento da condição humana elevada ao mais elevado con- ceito de justiça.
A única “dissonância” que lhe descortinamos-- para seu padecimento--, será o excesso de coração e a virtude de incomodar os seres acomodatícios para quem a injustiça do pão e a negação da fraternidade são de tal modo curiais que deixaram de constituir mínimo delito.
Um artista, neste caso o poeta, deveria (deverá) ser interpretado e valorizado pelo coração, pela sua obstinação em criar justiça e fraternidade em seu derredor e nunca catalogado pela sua matriz política, porque a arte nunca se desprestigiará, mau grado os defensores e adeptos obstinados da “arte pela arte”, ao servir fraternalmente a humanidade.
O autor semeia poemas e cantigas na esperançosa colheita de um mundo onde reine a equidade , versos que são um apelo dorido e inadiável para que saibamos criar justiça e semear fraternidade.
E porque o poeta, não pode viver permanentemente na dilaceração dos desacertos do mundo, embora seja fácil adivinhar-lhe duradoiras angústias, em última análise, será sempre o amor a salvação dos dias de cinza, porque amar é sempre um acto de reinvenção da vida e uma aposta esperançada no amanhã.
Viera da Silva expressa-o neste que consideramos, senão o mais belo, um dos mais belos poemas com que descerramos o epílogo desta modesta tentativa de interpretação do livro que, amistosa e generosamente nos ofertou.
meu sonho lindo
das horas loucas
nas madrugadas
meu porto aberto
das longas viagens
nas noites mortas
força de vento
vento de fúria
meu amor de nunca
corpo de chama
chama de raiva
meu amor de sempre
por ti me acendi
sangue inquieto
na manhã viva
por ti me acordo
vulcão rasgado
no cais amargo
Barbosa Tavares
Maio de 2004
Brampton, Ontário,
Canada